quinta-feira, julho 5

notas de um velho safado

por Charles Bukowski

Sente-se, Stirkoff.
Obrigado, senhor.
Espiche as penas.
Muito gentil da sua parte, senhor.
Stirkoff, eu compreendo que você anda escrevendo artigos sobre a justiça, a igualdade; também sobre o direito à felicidade e à sobrevivência. Stirkoff?
Sim, senhor?
Você acha que existirá algum dia uma justiça soberana e sensível no mundo?
Na realidade não, senhor.
Então porque você escreve essa merda? Você não está se sentindo bem?
Eu venho me sentindo meio estranho ultimamente, senhor, quase como se estivesse ficando louco.
Você anda bebendo muito, Stirkoff?
É claro, senhor.
E você de masturba?
Constantemente, senhor.
Como?
Eu não compreendo, senhor?
Eu me refiro a como você faz a coisa.
Quatro ou cinco ovos crus e meio quilo de hambúrguer num vaso de flores de gargalo estreito ouvindo Vaughn Williams ou Darius Milhaud.
Vidro?
Não, bunda, senhor.
Eu me refiro ao vaso, é de vidro?
É claro que não, senhor.
Você alguma vez já foi casado?
Muitas vezes, senhor.
O que aconteceu de errado?
Tudo, senhor.
Qual foi a melhor trepada da sua vida?
Quatro ou cinco ovos crus e meio quilo de hambúrguer num...
Tudo bem, tudo bem!
Mas é verdade.
Você se dá conta que o seu desejo ardente de justiça e de um mundo melhor é apenas fachada para ocultar a decadência e a vergonha e o fracasso que residem dentro de você?
Hã hã.
Você teve um pai depravado?
Eu não sei, senhor.
O que você quer dizer com você não sabe?
Quero dizer que é difícil de comparar. O senhor vê, eu só tive um.
Tá tentando bancar o esperto comigo, Stirkoff?
Oh não, senhor; como o senhor disse, a justiça é impossível.
Seu pai batia em você?
Eles se revezavam.
Pensei que você tinha apenas um pai.
Todo homem tem. O que quero dizer é que minha mãe dava as dela.
Ela amava você?
Somente como uma extensão de si mesma.
O que mais pode ser o amor?
O senso comum de querer muito alguma coisa muito boa. Não se precisa estar relacionado por laços de sangue, pode ser uma bola de praia vermelha ou uma fatia de torrada com manteiga.
Você está querendo dizer que você pode AMAR uma torrada com manteiga?
Somente algumas, senhor. Em determinadas manhãs. Sob determinados raios de sol. O amor chega e vai embora sem avisar.
É possível amar um ser humano?
É claro, especialmente se você não os conhece muito bem. Eu gosto de olhar para eles através da minha janela, caminhando na rua.
Stirkoff, você é um covarde?
É claro, senhor.
Qual é a sua definição de covarde?
Um homem que pensaria duas vezes antes de lutar com um leão com as mãos nuas.
E qual é sua definição de um homem corajoso?
Um homem que não sabe o que é um leão.
Qualquer homem sabe o que é um leão.
Qualquer homem pensa que sabe.
E qual é a sua definição de um tolo?
Um homem que não se dá conta que o Tempo, a Estrutura e a Carne em sua maior parte se desgastam.
Então quem é que é sábio?
Não existe nenhum sábio, senhor.
Então não pode haver nenhum tolo. Se não existe noite não pode existir dia; se não existe branco não pode existir preto.
Sinto muito, senhor. Eu pensava que tudo era o que era, não dependendo de qualquer outra coisa.
Você andou metendo o seu pau em vasos de flores demais. Será que você não compreende que TUDO está certo, que nada pode andar errado?
Eu compreendo, senhor, o que acontece, acontece.
O que é que você diria se eu tivesse que mandar decapitá-lo?
Eu não seria capaz de dizer coisa alguma, senhor.
Eu quis dizer que seu eu quisesse mandar decapitar você eu permaneceria a Vontade e você se transformaria em Nada.
Eu me transformaria em outra coisa.
À minha ESCOLHA.
De acordo com ambas as nossas escolhas, senhor.
Relaxe! Relaxe! Espiche as pernas!
Muito gentil da sua parte, senhor.
Não, muito gentil de ambas as partes.
Naturalmente, senhor.
Você diz que freqüentemente sente essa loucura. O que é que você faz quando ela se apodera de você?
Escrevo poesia.
A poesia é loucura?
Não-poesia é loucura.
O que é loucura?
Loucura é feiúra.
O que é feio?
Para cada homem uma coisa diferente.
A feiúra é conveniente?
Ela está aí.
Ela é conveniente?
Eu não sei, senhor.
Você aspira ao conhecimento? O que é conhecimento?
Conhecer o mínimo possível.
Como é que pode ser isso?
Eu não sei, senhor.
Você pode construir uma ponte?
Não, senhor.
Você pode fabricar uma arma?
Não, senhor.
Estas coisas são produtos do conhecimento.
Estas coisas são pontes e armas.
Eu vou mandar decapitá-lo.
Obrigado, senhor.
Por quê?
O senhor é minha motivação quando eu tenho muito pouca.
Eu sou a justiça.
Talvez.
Eu sou o vencedor. Eu vou fazer que você seja torturado, eu vou fazer você gritar. Eu farei você desejar a morte.
Naturalmente, senhor.
Será que você não se dá conta que eu sou o seu senhor?
O senhor é o meu manipulador; mas não há nada que o senhor possa fazer a mim que não possa ser feito.
Você pensa que fala inteligentemente, mas com os seus gritos você não dirá nada inteligente.
Eu duvido, senhor.
Por falar nisso, como é que você pode escutar Vaughn Williams e Darius Milhaud? Nunca ouviu falar nos Beatles?
Oh, senhor, todo mundo já ouviu falar dos Beatles.
Você não gosta deles?
Eu não desgosto deles.
Você desgosta de algum cantor?
Cantores não podem ser desgostados.
Então, qualquer pessoa que tenta cantar?
Frank Sinatra.
Por quê?
Ele evoca uma sociedade doente para uma sociedade doente.
Você lê algum jornal?
Apenas um.
Qual?
OPEN CITY.
GUARDA! LEVE ESTE HOMEM PARA AS CÂMARAS DE TORTURA IMEDIATAMENTE E DÊEM INÍCIO AOS PROCEDIMENTOS!
Senhor, último pedido.
Sim.
Posso levar meu vaso de flores comigo?
Não, eu vou usar ele.
Senhor?
Quer dizer, eu vou confiscá-lo. Agora, guarda, leve esse idiota daqui!
E, guarda, volte com, volte com...
Sim, senhor?
Uma meia dúzia de ovos crus e alguns quilos de alcatra moída...
Saem o guarda e o prisioneiro, o rei inclina-se para a frente, sorri maliciosamente enquanto Vaughn Williams vai se insinuando pelo sistema de comunicação. Lá fora, o mundo movimenta-se para frente enquanto um cão infestado de pulga mija num lindo limoeiro vibrando sob o sol.

domingo, julho 1

saudades do Japão

Fala-se do aumento da conta de luz ao casamento do filho do Jorge, da gravidez precoce da prima do cunhado do Oswaldo a especulações sobre o preço do carro novo da vizinha, da formatura do filho de Ruth à feiúra da namorada do rapaz... Puta que pariu, cada vez mais menos pessoas conseguem me despertar algum tipo de curiosidade em ouvi-las. Sempre as mesmas histórias, os mesmos problemas cotidianos, os mesmos e poucos relatos de falsa felicidade. Chego a sentir saudades da minha vida em Atsugi. Não compreendia o idioma, não diferenciava um japonês do outro e só me alimentava de arroz e peixe cru. Uma vida saudável. Nenhuma gordura insaturada, nenhuma conversa fiada e nenhuma mulher ocidental por perto tentando destruir a minha vida. Incrível como dedicamos a maior parte de nossa existência insignificante a falar da insignificância alheia, ainda mais singular é a nossa capacidade em transformar - sem nenhum constrangimento - o ouvido dos outros em penico. Haja paciência pra ouvir tanta besteira, haja cotonete pra limpar tanta merda.