quarta-feira, setembro 26

tropa DA elite ou matou na favela e foi ao cinema

por Adriana Facina e Mardonio Barros
Observatório da Indústria Cultural


“Homem de preto, qual é sua missão?
É invadir favela e deixar corpo no chão.”

Esse “canto de guerra” é um dos muitos entoados pelo BOPE (Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar) nos seus treinamentos. Muito significativo e direto, já que mostra claramente onde se localizam os inimigos a serem abatidos. Trata-se de uma guerra contra os pobres, recrudescida em tempos neoliberais nos quais a contrapartida da criação de uma sociedade do desemprego é a necessidade das classes dominantes ampliarem não somente os meios para obtenção do consenso, mas também os instrumentos coercitivos que mantenham os oprimidos sob controle.

Em meio às crescentes denúncias contra a atuação do BOPE nas favelas cariocas, que se pauta por uma política deliberada de extermínio ao arrepio do Estado de direito, surgem nas ruas da cidade cópias do filme Tropa de elite, antes mesmo de seu lançamento no cinema, previsto para o mês de outubro. Tropa de elite já é um sucesso de público, está “na boca do povo”, fascina adolescentes e mesmo crianças de classe média, e reúne no orkut uma comunidade com mais de 55 mil membros. Virou também assunto da imprensa, devido ao suposto vazamento da cópia não autorizada, que acarretou processos e ameaças de prisão dos envolvidos.

Com produção no estilo hollywoodiano, o filme tem como ponto de partida o livro Elite da tropa, escrito pelo sociólogo e ex-subsecretário de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro Luiz Eduardo Soares, pelo capitão do BOPE André Batista (negociador no seqüestro do ônibus 174) e por Rodrigo Pimentel, ex-capitão do BOPE. Mas não reproduz fielmente nas telas as histórias nele contadas. O personagem central nessa articulação é Rodrigo Pimentel, um dos roteiristas do filme. Pimentel foi “descoberto” no documentário Notícias de uma guerra particular, de 1997, dirigido por João Moreira Salles e Kátia Lund e forneceu o mote do título do filme, enunciando uma tese que vem ganhando fôlego e pautando as políticas de segurança pública do Estado: vivemos num estado de guerra entre, de um lado, o Estado e os “cidadãos de bem” e, de outro, os bandidos/traficantes. E não se trata de qualquer guerra. Mas sim de uma guerra total que, nos moldes da “guerra ao terror” empreendida por Bush, justifica a suspensão dos direitos humanos e legitima práticas ilegais como torturas e execuções sumárias com base na idéia de que elas são necessárias para garantir a segurança pública. É preciso lembrar ainda que argumento semelhante foi amplamente utilizado, na história recente do país, para justificar os arbítrios cometidos pelo Estado durante a ditadura militar. No caso do filme, é o narrador, capitão Nascimento, que afirma: “se o BOPE não existisse, os traficantes já teriam tomado a cidade há muito tempo”. Nessa lógica de um tudo ou nada distorcido, quem defende direitos humanos, defende os bandidos e é cúmplice da violência urbana que assola a cidade.

Cúmplices são também os que consomem as drogas ilícitas vendidas nas favelas. O tráfico de armas (e a indústria bélica que dele se beneficia), as ligações extra-favela do tráfico que, como todos sabem, atingem autoridades que organizam de fato as redes do crime, cujo elo mais fraco são os “vagabundos” assassinados cotidianamente pelo Estado, não são levados em conta nesse argumento. Numa das cenas mais chocantes do filme, capitão Nascimento, após comandar uma ação que resulta na morte de um traficante, esfrega o rosto de um estudante, que estava na favela consumindo drogas, em cima do sangue que sai do buraco aberto pela bala no peito do jovem morto e pergunta se ele sabia quem havia matado o rapaz. O estudante diz que foi um dos policiais, ao que Nascimento responde: “um de vocês é o caralho! Quem matou esse cara aqui foi você. Seu viado, seu maconheiro, é você quem financia essa merda. A gente sobe aqui pra desfazer a merda que vocês fazem.”

Portanto, coerção e consumo estão no centro das teses que organizam o filme.

Tropa de elite conta a história do drama privado do capitão Nascimento, significativo nome para um oficial “padrão” de uma polícia que tem como símbolo uma faca na caveira. Capitão Nascimento vai ser pai e o nascimento de seu filho o impulsiona a buscar um substituto no comando de uma guarnição do BOPE. Cansado da “guerra” cotidiana travada nas favelas cariocas, com síndrome do pânico e pressionado pela esposa grávida, Nascimento é um herói humanizado, um personagem complexo, ao mesmo tempo forte, incorruptível, carismático e também frágil, capaz de sentir remorsos pela morte de um menino fogueteiro, denominado por ele “sementinha do mal”, que resulta de uma operação sob seu comando.

Os candidatos a substituto de Nascimento são Neto e Matias, aspirantes a oficiais da polícia militar que se negam a participar dos esquemas de corrupção da corporação e, por conta disso, acabam se incorporando ao curso preparatório do BOPE. Neto é descrito como tendo a polícia no coração. Destemido e impulsivo, exímio atirador, gostava dos combates nas favelas e era o favorito de Nascimento. Seu amigo Matias, negro e de origem pobre, era mais racional, “gostava da lei” e se dividia entre ser estudante de direito da PUC e pertencer à polícia. Seguindo a classificação de Nascimento, os policiais cariocas só têm três alternativas: “ou se corrompem, ou se omitem ou vão para guerra”. Aprendizes de heróis, Neto e Matias só poderiam seguir a terceira opção.Por conta da faculdade, Matias se envolve com uma menina de classe média alta que dirige uma ONG patrocinada por um político no Morro dos Prazeres e “fechada” com o chefe do tráfico na favela. A princípio, seus colegas da faculdade, ligados à ONG, não sabem que Matias é policial. Todos os estudantes são consumidores de drogas ilícitas. Um deles é “avião” e vende drogas na universidade.

Baiano, o chefe do tráfico na favela da ONG, assim como os colegas e a namorada de Matias descobrem que ele é policial através de uma foto que sai publicada nas páginas de um jornal. Esse fato desencadeia uma série de eventos que culminam na morte de Neto e na conversão definitiva de Matias em oficial do BOPE durante a caça a Baiano, motivada pela necessidade de vingar a morte do amigo. O policial que “gostava da lei” passa a torturar e executar, provando assim sua conversão de corpo e alma. O homem preto se torna homem de preto, “caveira, meu capitão”.

Nossos mariners tupiniquins são apresentados como soldados muito bem treinados, capazes de suportar um treinamento destinado a poucos, uma elite exemplar com um papel fundamental no estado de sítio em que vivemos: conter os pobres. Tropa de elite recolhendo corpos supérfluos daqueles que, em outros tempos, eram exército de reserva de mão-de-obra e que hoje, em meio ao desemprego estrutural e à ditadura do capital financeiro, são o lixo da sociedade.

A necessidade de conter (e mesmo eliminar) os pobres é o objetivo dessa guerra particular ou privada e, nesse contexto, uma tropa de elite se configura como uma tropa DA elite, necessária para garantir a ordem e o respeito à propriedade privada. Isso explica porque 100% das operações do BOPE são realizadas em favelas.

No filme, o discurso que legitima o BOPE e suas ações é persuasivo e se articula em três níveis. Num primeiro nível, o BOPE aparece como uma resposta à ineficiência e corrupção da “polícia convencional” e aos políticos que a alimentam. Assim, essa elite de policiais é apresentada como incorruptível e como um padrão a ser seguido, de referência internacional. O lema “faca na caveira e nada na carteira” resume esse discurso moralista e pragmático que atende perfeitamente aos apelos midiáticos por ordem e moralidade.

Um segundo nível pode ser identificado na apresentação do BOPE como uma seita que, através de um árduo rito de passagem – o curso de treinamento -, seleciona homens fortes, honestos e “formados na base da porrada”, preparados para resistir às piores provações. A seleção é a base da consolidação de uma camaradagem entre essa elite, em oposição àqueles que “nunca serão”, reatualizada nas práticas cotidianas de transgressão da lei. Numa das cenas do filme, um coronel e seus comandados, entre eles Nascimento, estão organizando as turmas do curso preparatório. Entre risadas e num clima descontraído, o coronel diz que não quer saber de tímpano perfurado em aula inaugural e de mão cortada. Mesma complacência para com os “excessos”, que afinal sempre podem ser “merecidos”, que ocorrem durante as operações nas favelas. Em tempos de fragmentação, individualismo e consumismo, podemos imaginar o apelo desse discurso que louva um corpo de homens unidos por um forte sentimento de pertencimento a uma elite e por um orgulho quase racial, seres superiores, elevados, em meio ao mundo de miséria, fraqueza e corrupção. Homens de caráter em tempos de corrosão do caráter. O terceiro nível desse discurso persuasivo é o do indivíduo, de seus dramas pessoais, que humaniza o herói e o aproxima dos seres humanos comuns, capazes de se reconhecerem e se identificarem com ele. Capitão Nascimento é o herói que sacrifica a vida pessoal e que não estende sua brutalização à vida privada. Como na cena em que ele, durante uma operação na favela, logo depois de se emocionar ao ouvir ao celular o coração do filho batendo na barriga da mãe, manda seu subordinado atirar dizendo: “senta o dedo nessa porra!”. Ou no momento em que, de farda, vindo da “guerra”, chora ao ver seu filho recém-nascido na maternidade. Nascimento trata sua mulher de forma amorosa e se sensibiliza com as pressões que ela faz para que ele saia do BOPE. Com exceção de uma cena, após a morte de Neto, a única em que ele aparece fardado no ambiente doméstico, na qual ele grita: “quem manda nessa porra aqui sou eu e você não vai mais abrir a boca para falar do meu batalhão nessa casa”. Significativamente, após impor seu comando em casa, ele fica curado dos ataques de pânico e joga fora os medicamentos psiquiátricos que estava usando.Todos esses níveis se articulam em torno da naturalização da idéia de que vivemos num estado de exceção, uma situação atípica que demandaria regras também atípicas para sua solução. Essa naturalização permite um relativismo de valores e práticas, de direitos e garantias no que dizem respeito à dignidade da vida humana. Falar em direitos humanos não faz nenhum sentido num estado de coisas que institui valores desiguais para as vidas humanas de acordo com critérios como cor da pele, origem social e mesmo idade, já que os jovens pobres e negros são hoje as principais vítimas de homicídios, bem como formam a maioria da população carcerária do país.

No entanto, é preciso afirmar que o estado de exceção na verdade é a regra sob o capitalismo, que não pode prescindir, sobretudo em sociedades dramaticamente desiguais como a brasileira, do trato brutal com os de baixo.

Não há como não lembrar aqui de um poema escrito por Bertolt Brecht num contexto de vitória do fascismo na Europa, no qual outros homens de preto, em defesa da ordem do capital, esvaziaram de significado a palavra humanidade:

A exceção e a regra

Estranhem o que não for estranho.
Tomem por inexplicável o habitual.
Sintam-se perplexos ante o cotidiano.
Tratem de achar um remédio para o abuso.
Mas não se esqueçam de que o abuso é sempre a regra.

quinta-feira, setembro 20

ecologicamente correto

Maria acordou com um enorme sentimento de culpa. Ajoelhou-se aos pés da cama e, de olhos fechados, pôs-se a lamentar.

- Como pude fazer isso por todos esses anos? Como não percebi o mal que estava cometendo? Como pude usar por tanto tempo sacolas plásticas de supermercado? Como?

Por alguns segundos Maria calou-se. Respirou profundamente. Lágrimas escorreram de seus olhos.

- O que será do futuro do nosso planeta? A culpa de toda essa poluição é minha, e sou ainda mais culpada que qualquer outra pessoa...

Com receio de que uma sacola de plástico não suportasse o peso de suas compras semanais [2 pães, 1 quilo de fubá, 1 litro de leite tipo “c”, 1/2 quilo de carne de segunda, 1/2 quilo de arroz parboilizado, 1/2 quilo de macarrão e 1 pacote de bolacha de água e sal], Maria cometera, repetidas vezes, o crime ambiental de utilizar duas sacolas plásticas a cada visita ao supermercado mais próximo.

-Perdão, senhor! Sou a pior das mulheres, a pior das cristãs! Prometo fazer de tudo pra me redimir desse pecado! Nunca mais usarei sacolas plásticas de supermercado, nunca mais usarei nenhuma sacola que não seja “bio-desgradável”!

Maria prometeu, com toda sua fé, lutar por um mundo melhor, por um mundo sem poluição, para que seus filhos e netos possam desfrutar de todas as maravilhas de um mundo sem sacolas plásticas.

- Vi ontem no Jornal Nacional! Agora só vou às compras com uma sacola de tecido de fibras naturais, desenvolvida por estilistas famosos, como as sacolas utilizadas pelas donas de casa “nas Europa”!

Tais sacolas dispõem de compartimentos apropriados para a acomodação de alimentos orgânicos em geral, hortaliças hidropônicas, etc, além de um dispositivo de alarme contra a tentativa de acomodação de qualquer alimento geneticamente modificado ou cultivado com o uso de pesticidas artificiais e herbicidas.

- Vou economizar até meu último centavo pra comprar minha “sacola de supermercado ecologicamente correta”, não quero saber de saco plástico, se um supermercado quiser me dar esses saquinhos eu não compro mais nele, agora levarei de casa minha própria sacola.

Com poucos anos de economia Maria conseguirá pagar as prestações de sua “sacola ecológica”, basta diminuir seu consumo semanal de carne de segunda e arroz parboilizado, e convenhamos, o pão e a bolacha de água e sal são totalmente dispensáveis em uma dieta saudável!

Sem gastos com sacolas plásticas os donos de supermercado poderão aumentar substancialmente o salário de seus funcionários, ou, poderão aumentar substancialmente seus lucros... A segundo opção me parece mais “ecologicamente correta”!

Enfim, preservando o meio-ambiente das sacolas plásticas Maria garantirá o futuro do seu planeta, o futuro dos donos de supermercado, o futuro dos seus filhos e netos, que poderão, assim como ela, em um futuro próximo, comprar seu fubá, sua carne de segunda, seu arroz parboilizado e sua bolacha de água e sal em um mundo livre de poluição, livre de sacos plásticos! Em um mundo mais justo, em um mundo muito melhor!

quinta-feira, setembro 13

o vazio da existência

por Arthur Schopenhauer
[...]

Num mundo como este, onde nada é estável e nada perdura, mas é arremessado em um incansável turbilhão de mudanças, onde tudo se apressa, voa, e mantém-se em equilíbrio avançando e movendo-se continuamente, [...] em tal mundo, a felicidade é inconcebível. [...] Primeiramente, nenhum homem é feliz; luta sua vida toda em busca de uma felicidade imaginária, a qual raramente alcança, e, quando alcança, é apenas para sua desilusão; e, via de regra, no fim, é um náufrago, chegando ao porto com mastros e velas faltando. Então dá no mesmo se foi feliz ou infeliz, pois sua vida nunca foi mais que um presente sempre passageiro, que agora já acabou.

[...]

As cenas de nossa vida são como imagens em um mosaico tosco; vistas de perto, não produzem efeitos – devem ser vistas à distância para ser possível discernir sua beleza. Assim, conquistar algo que desejamos significa descobrir quão vazio e inútil este algo é; estamos sempre vivendo na expectativa de coisas melhores, enquanto, ao mesmo tempo, comumente nos arrependemos e desejamos aquilo que pertence ao passado. Aceitamos o presente como algo que é apenas temporário e o consideramos como um meio para atingir nosso objetivo. Deste modo, se olharem para trás no fim de suas vidas, a maior parte das pessoas perceberá que viveram-nas provisoriamente: ficarão surpresas ao descobrir que aquilo que deixaram passar despercebido e sem proveito era precisamente sua vida – isto é, a vida na expectativa da qual passaram todo o seu tempo. Então se pode dizer que o homem, via de regra, é enganado pela esperança até dançar nos braços da morte!

[...]

Está suficientemente claro que a vida humana deve ser algum tipo de erro, com base no fato de que o homem é uma combinação de necessidades difíceis de satisfazer; ademais, se for satisfeito, tudo que obtém um estado de ausência de dor, no qual nada resta senão seu abandono ao tédio. Essa é uma prova precisa de que a existência em si mesma não tem valor, visto que o tédio é meramente o sentimento do vazio da existência. Se, por exemplo, a vida – o desejo pelo qual se constitui nosso ser – possuísse qualquer valor real e positivo, o tédio não existiria: a própria existência em si nos satisfaria, e não desejaríamos nada. Mas nossa existência não é uma coisa agradável a não ser que estejamos em busca de algo; então a distância e os obstáculos a serem superados representam nossa meta como algo que nos satisfará – uma ilusão que desvanece assim que o objetivo é atingido; ou quando estamos engajados em algo que é de natureza puramente intelectual – quando nos distanciamos do mundo a fim de podermos observá-lo pelo lado de fora, como espectadores de um teatro. Mesmo o prazer sensual em si não significa nada além de um esforço contínuo, o qual cessa tão logo quanto seu objetivo é alcançado. Sempre que não estivermos ocupados em algum desses modos, mas jogados na existência em si, nos confrontamos com seu vazio e futilidade; e isso é o que denominamos tédio. O inato e inextirpável anseio pelo que é incomum demonstra quão gratos somos pela interrupção do tedioso curso natural das coisas. Mesmo a pompa e o esplendor dos ricos em seus castelos imponentes, no fundo, não passam de uma tentativa fútil de escapar da essência existencial, a miséria.

segunda-feira, setembro 3

guerra santa

Falta sono, sobra desassossego... Não me consterna a emigração dos sudaneses, a guerra civil na Somália ou os conflitos em terras colombianas, minha inquietude nada tem de altruísta, é egoísta mesmo, e politicamente incorreta, diz respeito só ao meu umbigo. Da Jihad islâmica que me tira o sono eu sou o Aiatolá, o homem-bomba, a Faixa de Gaza, a Condoleeza Rice e todos os inúteis da ONU... E assim como a ocupação americana no Iraque - que tinha data pra acabar mas continua até hoje – minha Santa Cruzada se estendeu e parece perene, apontando um final feliz tão provável quanto a paz no Oriente Médio.