quarta-feira, dezembro 19

dois caras

Era um daqueles caras apaixonados. Existia com tamanha intensidade que tudo à sua volta alcançava dimensões e significados inacreditáveis. Era capaz de transformar o trivial em sublime, de reconhecer no superficial as mais densas qualidades. Encarava o contingente com desconfiança, para ele, nada era fortuito, nada era acidental. Tudo era singular, único, e absolutamente indispensável de ser vivido.

Era um daqueles caras apaixonantes. Sem esforço fazia com que todos, de algum modo, o desejassem. Não existia um motivo óbvio pra isso, mas algo nele era diferente. Era dono de uma espantosa capacidade de fazer com que nada parecesse chato, desinteressante, menor. Ao seu lado o tolo sentia-se astuto, o sem graça era hilariante, e o mais prosaico dos mortais percebia-se, por alguns instantes, especial.

segunda-feira, dezembro 17

respostas de fim de ano

Não, Papai Noel não existe. Não, no Natal ninguém comemora o nascimento do menino Jesus, as pessoas só se empanturram de comida, enchem a cara de vinho, fazem brincadeiras idiotas do tipo amigo-oculto e colaboram para a felicidade geral dos comerciantes e dos fabricantes de Engov, Sonrisal e Sal de Frutas Eno... E acredite, elas fazem isso sem entender direito o porquê.

Não, Ano Novo não é sinônimo de vida nova, é só uma solução inteligente para mantê-lo esperançoso e resignado em relação às barbaridades da vida cotidiana. Não, as pessoas não estão e nem são felizes, elas só aparentam felicidade, assim como nos especiais de fim de ano da Rede Globo. Não, hoje não é um novo dia de um novo tempo que começou, as alegrias também não serão de todos [serão das mesmas pessoas do ano passado], e não se iluda, nossos sonhos não serão verdade, assim como a festa não é sua, não é nossa e muito menos é de quem quiser. A festa é só para convidados VIPs!

quarta-feira, novembro 28

repensando o futuro

Tenho andado demasiadamente preocupado. Em poucos meses não mais receberei a esmola “Federal” oferecida àqueles que pensam que sua produção “pseudo-intelectual-acadêmica" um dia terá alguma valia para a sociedade brasileira [na maioria dos casos, no lugar de a sociedade brasileira, leia-se: o seu próprio umbigo]. No momento estudo alternativas de vivência para o resto dos meus dias...

Ah, trabalhar não é uma alternativa de vivência, persigo a idéia de vida, não de sobrevida. A opção trabalho, emprego, ocupação ou outras derivações do gênero tornariam meus dias vindouros simplesmente insuportáveis, uma alternativa nada razoável! Prefiro ater-me aos ensinamentos de Paul Lafargue, Guy Debord, Raoul Vaneigem e Bob Black: VAMOS ABOLIR O TRABALHO!

Sendo assim, a primeira alternativa plausível seria ingressar em outro mestrado, e depois outro, e outro, e outro... Mas passar a vida ouvindo besteiras de gente com Phd em falar besteiras, cansa, sem contar que isso poderia me transformar em um Phd em falar besteiras ainda maior e melhor que todos eles juntos... Melhor não!

Poderia também fundar uma ONG pra salvar o mundo das cáries e levar a cultura a todos os povos oprimidos do planeta! Obviamente omitiria que a cárie nada mais é do que uma invenção maquiavélica dos dentistas pra ganhar dinheiro com obturações [assim como o vírus da AIDS é uma invenção das grandes corporações farmacêuticas pra vender AZT]! Guardaria ainda mais segredo sobre a real identidade da cultura, intimamente tratada pelos engolidores de mundo como a “mercadoria ideal”, aquela que nos obriga a comprar todas as outras mercadorias! Rararárarárarárárárá [Risada maléfica]! Mas criar uma ONG com esse perfil não seria nada original, existem milhares delas por aí!

Outra opção seria aprender a fazer uns artesanatos, uns brincos de arame com sementes de girassol, açaí... Peregrinar pelo Brasil sem tomar banho, cheio de tatuagem de henna pelo corpo e uma coleção de piolhos maior que a do Bob Marley! Mas isso é bicho grilo demais pra minha personalidade já moldada aos bons modos e às boas maneiras da classe dominante! E também não levo muito jeito pra esse tipo de atividade manual... Nada Feito!

Resta-me uma última alternativa...

Colocar uma mochila nas costas e ir de encontro ao velho continente, desfrutar de todas as vantagens científicas, culturais, econômicas e sociais que o 1º mundo pode oferecer a um pobre rapaz latino-americano:

Drogas sintéticas pela bagatela de 2 euros; haxixe marroquino de 1ª qualidade; cogumelos mágicos devidamente embalados e higienizados; cocaína, anfetamina e todas as “inas” possíveis e inimagináveis; praias de nudismo; casas de prostituição; ninfomaníacas suecas, dinamarquesas, polacas, ucranianas, eslovacas, tchecas, russas... Ah, e ainda falta a melhor parte: uma malha metroviária interminável, onde poderei jogar malabares pelo resto dos meus dias, ganhando muito mais dinheiro e comendo muito mais gente do que um professor universitário no Brasil!

segunda-feira, novembro 26

fina indigestão

Sinto uma vontade quase incontrolável de vomitar. Vomitar toda a minha cordialidade, meus bons modos, minha postura socialmente adequada. Vomitar todo o meu senso de civilidade, minha formação politicamente correta, minha sensatez, minha educação. Sinto uma vontade quase incontrolável de vomitar toda essa merda.

Não, não quero vomitar escondido, abraçado a privada fedida de um banheiro qualquer. Quero vomitar na rua, nos corredores dos edifícios comerciais, na porta dos restaurantes, nas mesas de bar. Quero vomitar nos auditórios das universidades, nas academias de ginástica, nos consultórios médicos. Quero vomitar nos postos de gasolina, nas lojas de conveniência, no banco cheirando a novo do automóvel zero quilômetro. Quero vomitar nas pessoas, em seus cabelos bem cortados, em suas barbas bem feitas, em suas roupas de festa. Quero vomitar em tudo, para que todos sintam o cheiro do mais podre que guardamos dentro de nós.

segunda-feira, novembro 19

acordado

Ele passou o ano dormindo. Acreditava que assim as horas correriam e os dias saltariam de dois em dois. É verdade que, por persistir nessa letargia, aparentemente absurda, sentia-se por vezes um grandessíssimo idiota, mas mantinha a convicção de que os grandes idiotas nunca se reconheciam idiotas, às vezes percebiam-se grandes, mas idiotas, em momento algum.

Ele compreendia e queria acreditar em muita coisa, só não se dava conta de que no fundo, bem no fundo, insistia em dormir por medo de acordar. Acordar e perceber que somente ele mantinha os olhos fechados pro mundo lá fora, desejando, sozinho, que o tempo passasse de pressa. Sofria da doença daqueles que amam demais, que sonham demais, que acreditam demais nas pessoas.


Mas seu medo passou. Seus olhos já não se encontram mais fechados. Quanto à doença... Ainda prefere dispensar a cura.

terça-feira, novembro 6

domingo, outubro 28

sobre chatos, bêbados e abstêmios

Compartilho com os móveis velhos do meu quarto minha desagradável presença. Nesse momento, não poderia estar em pior companhia. Insisto em discutir comigo mesmo sempre a mesma história. Tento a toda hora mudar de assunto, mas com a inconveniência característica dos chatos, disfarço e finjo não perceber a minha própria vontade de mudança.

Impossível passar 24 horas por dia com uma companhia desagradável sem ingerir alguma substância que altere seu estado de percepção. Hoje consigo entender os homens solitários que se tornam bêbados inveterados. Mulher chata a gente troca, filho chato manda pro colégio interno, sogra chata a gente não visita, mas se o chato é você, a opção menos drástica na tentativa de tornar sua existência menos miserável é encher a cara.

Isso explica por que todo abstêmio é um chato desprovido de autocrítica. Além de não se achar um chato ele consegue se agüentar por uma vida inteira sem o álcool como subterfúgio. Se a questão é de escolha, entre um abstêmio chato e masoquista ou um bêbado quase divertido e delirante, fico com a segunda opção.

sexta-feira, outubro 26

cansado

Ele nunca sofreu pela ausência ou presença inconveniente de alguém. Sempre teve como hábito a solidão. Ninguém para escutar, ninguém com quem falar. Ele nunca recordava de seus sonhos. Sempre foi cético demais para acreditar no desconhecido. Ele nunca se sentiu merecedor de algo: um afago, um gesto de simpatia, um xingamento, um olhar de desprezo. Manteve-se sempre incógnito: parcas palavras, raros e tímidos sorrisos, nenhum amigo, poucas mulheres. Ele não tinha medo, também não tinha coragem. Não sentia orgulho e nem pena de si. Como se não estivesse vivo, ele simplesmente não sentia nada.

Naquele dia acordou diferente. Estava tomado por uma indisposição peculiar. Sua saúde ainda era de ferro, nenhuma alteração nos exames, nenhuma doença. Pela primeira vez na vida ele se sentia cansado. Talvez cansado pela noite mal dormida, talvez quem sabe, apenas cansado... Cansado de não ser bom nem mau, cansado de não estar feliz nem triste. Cansado de não fazer parte de nada, cansado de estar distante de tudo. Cansado de ser indiferente, cansado de não fazer a diferença. Cansado. Simplesmente cansado de si.

quarta-feira, setembro 26

tropa DA elite ou matou na favela e foi ao cinema

por Adriana Facina e Mardonio Barros
Observatório da Indústria Cultural


“Homem de preto, qual é sua missão?
É invadir favela e deixar corpo no chão.”

Esse “canto de guerra” é um dos muitos entoados pelo BOPE (Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar) nos seus treinamentos. Muito significativo e direto, já que mostra claramente onde se localizam os inimigos a serem abatidos. Trata-se de uma guerra contra os pobres, recrudescida em tempos neoliberais nos quais a contrapartida da criação de uma sociedade do desemprego é a necessidade das classes dominantes ampliarem não somente os meios para obtenção do consenso, mas também os instrumentos coercitivos que mantenham os oprimidos sob controle.

Em meio às crescentes denúncias contra a atuação do BOPE nas favelas cariocas, que se pauta por uma política deliberada de extermínio ao arrepio do Estado de direito, surgem nas ruas da cidade cópias do filme Tropa de elite, antes mesmo de seu lançamento no cinema, previsto para o mês de outubro. Tropa de elite já é um sucesso de público, está “na boca do povo”, fascina adolescentes e mesmo crianças de classe média, e reúne no orkut uma comunidade com mais de 55 mil membros. Virou também assunto da imprensa, devido ao suposto vazamento da cópia não autorizada, que acarretou processos e ameaças de prisão dos envolvidos.

Com produção no estilo hollywoodiano, o filme tem como ponto de partida o livro Elite da tropa, escrito pelo sociólogo e ex-subsecretário de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro Luiz Eduardo Soares, pelo capitão do BOPE André Batista (negociador no seqüestro do ônibus 174) e por Rodrigo Pimentel, ex-capitão do BOPE. Mas não reproduz fielmente nas telas as histórias nele contadas. O personagem central nessa articulação é Rodrigo Pimentel, um dos roteiristas do filme. Pimentel foi “descoberto” no documentário Notícias de uma guerra particular, de 1997, dirigido por João Moreira Salles e Kátia Lund e forneceu o mote do título do filme, enunciando uma tese que vem ganhando fôlego e pautando as políticas de segurança pública do Estado: vivemos num estado de guerra entre, de um lado, o Estado e os “cidadãos de bem” e, de outro, os bandidos/traficantes. E não se trata de qualquer guerra. Mas sim de uma guerra total que, nos moldes da “guerra ao terror” empreendida por Bush, justifica a suspensão dos direitos humanos e legitima práticas ilegais como torturas e execuções sumárias com base na idéia de que elas são necessárias para garantir a segurança pública. É preciso lembrar ainda que argumento semelhante foi amplamente utilizado, na história recente do país, para justificar os arbítrios cometidos pelo Estado durante a ditadura militar. No caso do filme, é o narrador, capitão Nascimento, que afirma: “se o BOPE não existisse, os traficantes já teriam tomado a cidade há muito tempo”. Nessa lógica de um tudo ou nada distorcido, quem defende direitos humanos, defende os bandidos e é cúmplice da violência urbana que assola a cidade.

Cúmplices são também os que consomem as drogas ilícitas vendidas nas favelas. O tráfico de armas (e a indústria bélica que dele se beneficia), as ligações extra-favela do tráfico que, como todos sabem, atingem autoridades que organizam de fato as redes do crime, cujo elo mais fraco são os “vagabundos” assassinados cotidianamente pelo Estado, não são levados em conta nesse argumento. Numa das cenas mais chocantes do filme, capitão Nascimento, após comandar uma ação que resulta na morte de um traficante, esfrega o rosto de um estudante, que estava na favela consumindo drogas, em cima do sangue que sai do buraco aberto pela bala no peito do jovem morto e pergunta se ele sabia quem havia matado o rapaz. O estudante diz que foi um dos policiais, ao que Nascimento responde: “um de vocês é o caralho! Quem matou esse cara aqui foi você. Seu viado, seu maconheiro, é você quem financia essa merda. A gente sobe aqui pra desfazer a merda que vocês fazem.”

Portanto, coerção e consumo estão no centro das teses que organizam o filme.

Tropa de elite conta a história do drama privado do capitão Nascimento, significativo nome para um oficial “padrão” de uma polícia que tem como símbolo uma faca na caveira. Capitão Nascimento vai ser pai e o nascimento de seu filho o impulsiona a buscar um substituto no comando de uma guarnição do BOPE. Cansado da “guerra” cotidiana travada nas favelas cariocas, com síndrome do pânico e pressionado pela esposa grávida, Nascimento é um herói humanizado, um personagem complexo, ao mesmo tempo forte, incorruptível, carismático e também frágil, capaz de sentir remorsos pela morte de um menino fogueteiro, denominado por ele “sementinha do mal”, que resulta de uma operação sob seu comando.

Os candidatos a substituto de Nascimento são Neto e Matias, aspirantes a oficiais da polícia militar que se negam a participar dos esquemas de corrupção da corporação e, por conta disso, acabam se incorporando ao curso preparatório do BOPE. Neto é descrito como tendo a polícia no coração. Destemido e impulsivo, exímio atirador, gostava dos combates nas favelas e era o favorito de Nascimento. Seu amigo Matias, negro e de origem pobre, era mais racional, “gostava da lei” e se dividia entre ser estudante de direito da PUC e pertencer à polícia. Seguindo a classificação de Nascimento, os policiais cariocas só têm três alternativas: “ou se corrompem, ou se omitem ou vão para guerra”. Aprendizes de heróis, Neto e Matias só poderiam seguir a terceira opção.Por conta da faculdade, Matias se envolve com uma menina de classe média alta que dirige uma ONG patrocinada por um político no Morro dos Prazeres e “fechada” com o chefe do tráfico na favela. A princípio, seus colegas da faculdade, ligados à ONG, não sabem que Matias é policial. Todos os estudantes são consumidores de drogas ilícitas. Um deles é “avião” e vende drogas na universidade.

Baiano, o chefe do tráfico na favela da ONG, assim como os colegas e a namorada de Matias descobrem que ele é policial através de uma foto que sai publicada nas páginas de um jornal. Esse fato desencadeia uma série de eventos que culminam na morte de Neto e na conversão definitiva de Matias em oficial do BOPE durante a caça a Baiano, motivada pela necessidade de vingar a morte do amigo. O policial que “gostava da lei” passa a torturar e executar, provando assim sua conversão de corpo e alma. O homem preto se torna homem de preto, “caveira, meu capitão”.

Nossos mariners tupiniquins são apresentados como soldados muito bem treinados, capazes de suportar um treinamento destinado a poucos, uma elite exemplar com um papel fundamental no estado de sítio em que vivemos: conter os pobres. Tropa de elite recolhendo corpos supérfluos daqueles que, em outros tempos, eram exército de reserva de mão-de-obra e que hoje, em meio ao desemprego estrutural e à ditadura do capital financeiro, são o lixo da sociedade.

A necessidade de conter (e mesmo eliminar) os pobres é o objetivo dessa guerra particular ou privada e, nesse contexto, uma tropa de elite se configura como uma tropa DA elite, necessária para garantir a ordem e o respeito à propriedade privada. Isso explica porque 100% das operações do BOPE são realizadas em favelas.

No filme, o discurso que legitima o BOPE e suas ações é persuasivo e se articula em três níveis. Num primeiro nível, o BOPE aparece como uma resposta à ineficiência e corrupção da “polícia convencional” e aos políticos que a alimentam. Assim, essa elite de policiais é apresentada como incorruptível e como um padrão a ser seguido, de referência internacional. O lema “faca na caveira e nada na carteira” resume esse discurso moralista e pragmático que atende perfeitamente aos apelos midiáticos por ordem e moralidade.

Um segundo nível pode ser identificado na apresentação do BOPE como uma seita que, através de um árduo rito de passagem – o curso de treinamento -, seleciona homens fortes, honestos e “formados na base da porrada”, preparados para resistir às piores provações. A seleção é a base da consolidação de uma camaradagem entre essa elite, em oposição àqueles que “nunca serão”, reatualizada nas práticas cotidianas de transgressão da lei. Numa das cenas do filme, um coronel e seus comandados, entre eles Nascimento, estão organizando as turmas do curso preparatório. Entre risadas e num clima descontraído, o coronel diz que não quer saber de tímpano perfurado em aula inaugural e de mão cortada. Mesma complacência para com os “excessos”, que afinal sempre podem ser “merecidos”, que ocorrem durante as operações nas favelas. Em tempos de fragmentação, individualismo e consumismo, podemos imaginar o apelo desse discurso que louva um corpo de homens unidos por um forte sentimento de pertencimento a uma elite e por um orgulho quase racial, seres superiores, elevados, em meio ao mundo de miséria, fraqueza e corrupção. Homens de caráter em tempos de corrosão do caráter. O terceiro nível desse discurso persuasivo é o do indivíduo, de seus dramas pessoais, que humaniza o herói e o aproxima dos seres humanos comuns, capazes de se reconhecerem e se identificarem com ele. Capitão Nascimento é o herói que sacrifica a vida pessoal e que não estende sua brutalização à vida privada. Como na cena em que ele, durante uma operação na favela, logo depois de se emocionar ao ouvir ao celular o coração do filho batendo na barriga da mãe, manda seu subordinado atirar dizendo: “senta o dedo nessa porra!”. Ou no momento em que, de farda, vindo da “guerra”, chora ao ver seu filho recém-nascido na maternidade. Nascimento trata sua mulher de forma amorosa e se sensibiliza com as pressões que ela faz para que ele saia do BOPE. Com exceção de uma cena, após a morte de Neto, a única em que ele aparece fardado no ambiente doméstico, na qual ele grita: “quem manda nessa porra aqui sou eu e você não vai mais abrir a boca para falar do meu batalhão nessa casa”. Significativamente, após impor seu comando em casa, ele fica curado dos ataques de pânico e joga fora os medicamentos psiquiátricos que estava usando.Todos esses níveis se articulam em torno da naturalização da idéia de que vivemos num estado de exceção, uma situação atípica que demandaria regras também atípicas para sua solução. Essa naturalização permite um relativismo de valores e práticas, de direitos e garantias no que dizem respeito à dignidade da vida humana. Falar em direitos humanos não faz nenhum sentido num estado de coisas que institui valores desiguais para as vidas humanas de acordo com critérios como cor da pele, origem social e mesmo idade, já que os jovens pobres e negros são hoje as principais vítimas de homicídios, bem como formam a maioria da população carcerária do país.

No entanto, é preciso afirmar que o estado de exceção na verdade é a regra sob o capitalismo, que não pode prescindir, sobretudo em sociedades dramaticamente desiguais como a brasileira, do trato brutal com os de baixo.

Não há como não lembrar aqui de um poema escrito por Bertolt Brecht num contexto de vitória do fascismo na Europa, no qual outros homens de preto, em defesa da ordem do capital, esvaziaram de significado a palavra humanidade:

A exceção e a regra

Estranhem o que não for estranho.
Tomem por inexplicável o habitual.
Sintam-se perplexos ante o cotidiano.
Tratem de achar um remédio para o abuso.
Mas não se esqueçam de que o abuso é sempre a regra.

quinta-feira, setembro 20

ecologicamente correto

Maria acordou com um enorme sentimento de culpa. Ajoelhou-se aos pés da cama e, de olhos fechados, pôs-se a lamentar.

- Como pude fazer isso por todos esses anos? Como não percebi o mal que estava cometendo? Como pude usar por tanto tempo sacolas plásticas de supermercado? Como?

Por alguns segundos Maria calou-se. Respirou profundamente. Lágrimas escorreram de seus olhos.

- O que será do futuro do nosso planeta? A culpa de toda essa poluição é minha, e sou ainda mais culpada que qualquer outra pessoa...

Com receio de que uma sacola de plástico não suportasse o peso de suas compras semanais [2 pães, 1 quilo de fubá, 1 litro de leite tipo “c”, 1/2 quilo de carne de segunda, 1/2 quilo de arroz parboilizado, 1/2 quilo de macarrão e 1 pacote de bolacha de água e sal], Maria cometera, repetidas vezes, o crime ambiental de utilizar duas sacolas plásticas a cada visita ao supermercado mais próximo.

-Perdão, senhor! Sou a pior das mulheres, a pior das cristãs! Prometo fazer de tudo pra me redimir desse pecado! Nunca mais usarei sacolas plásticas de supermercado, nunca mais usarei nenhuma sacola que não seja “bio-desgradável”!

Maria prometeu, com toda sua fé, lutar por um mundo melhor, por um mundo sem poluição, para que seus filhos e netos possam desfrutar de todas as maravilhas de um mundo sem sacolas plásticas.

- Vi ontem no Jornal Nacional! Agora só vou às compras com uma sacola de tecido de fibras naturais, desenvolvida por estilistas famosos, como as sacolas utilizadas pelas donas de casa “nas Europa”!

Tais sacolas dispõem de compartimentos apropriados para a acomodação de alimentos orgânicos em geral, hortaliças hidropônicas, etc, além de um dispositivo de alarme contra a tentativa de acomodação de qualquer alimento geneticamente modificado ou cultivado com o uso de pesticidas artificiais e herbicidas.

- Vou economizar até meu último centavo pra comprar minha “sacola de supermercado ecologicamente correta”, não quero saber de saco plástico, se um supermercado quiser me dar esses saquinhos eu não compro mais nele, agora levarei de casa minha própria sacola.

Com poucos anos de economia Maria conseguirá pagar as prestações de sua “sacola ecológica”, basta diminuir seu consumo semanal de carne de segunda e arroz parboilizado, e convenhamos, o pão e a bolacha de água e sal são totalmente dispensáveis em uma dieta saudável!

Sem gastos com sacolas plásticas os donos de supermercado poderão aumentar substancialmente o salário de seus funcionários, ou, poderão aumentar substancialmente seus lucros... A segundo opção me parece mais “ecologicamente correta”!

Enfim, preservando o meio-ambiente das sacolas plásticas Maria garantirá o futuro do seu planeta, o futuro dos donos de supermercado, o futuro dos seus filhos e netos, que poderão, assim como ela, em um futuro próximo, comprar seu fubá, sua carne de segunda, seu arroz parboilizado e sua bolacha de água e sal em um mundo livre de poluição, livre de sacos plásticos! Em um mundo mais justo, em um mundo muito melhor!

quinta-feira, setembro 13

o vazio da existência

por Arthur Schopenhauer
[...]

Num mundo como este, onde nada é estável e nada perdura, mas é arremessado em um incansável turbilhão de mudanças, onde tudo se apressa, voa, e mantém-se em equilíbrio avançando e movendo-se continuamente, [...] em tal mundo, a felicidade é inconcebível. [...] Primeiramente, nenhum homem é feliz; luta sua vida toda em busca de uma felicidade imaginária, a qual raramente alcança, e, quando alcança, é apenas para sua desilusão; e, via de regra, no fim, é um náufrago, chegando ao porto com mastros e velas faltando. Então dá no mesmo se foi feliz ou infeliz, pois sua vida nunca foi mais que um presente sempre passageiro, que agora já acabou.

[...]

As cenas de nossa vida são como imagens em um mosaico tosco; vistas de perto, não produzem efeitos – devem ser vistas à distância para ser possível discernir sua beleza. Assim, conquistar algo que desejamos significa descobrir quão vazio e inútil este algo é; estamos sempre vivendo na expectativa de coisas melhores, enquanto, ao mesmo tempo, comumente nos arrependemos e desejamos aquilo que pertence ao passado. Aceitamos o presente como algo que é apenas temporário e o consideramos como um meio para atingir nosso objetivo. Deste modo, se olharem para trás no fim de suas vidas, a maior parte das pessoas perceberá que viveram-nas provisoriamente: ficarão surpresas ao descobrir que aquilo que deixaram passar despercebido e sem proveito era precisamente sua vida – isto é, a vida na expectativa da qual passaram todo o seu tempo. Então se pode dizer que o homem, via de regra, é enganado pela esperança até dançar nos braços da morte!

[...]

Está suficientemente claro que a vida humana deve ser algum tipo de erro, com base no fato de que o homem é uma combinação de necessidades difíceis de satisfazer; ademais, se for satisfeito, tudo que obtém um estado de ausência de dor, no qual nada resta senão seu abandono ao tédio. Essa é uma prova precisa de que a existência em si mesma não tem valor, visto que o tédio é meramente o sentimento do vazio da existência. Se, por exemplo, a vida – o desejo pelo qual se constitui nosso ser – possuísse qualquer valor real e positivo, o tédio não existiria: a própria existência em si nos satisfaria, e não desejaríamos nada. Mas nossa existência não é uma coisa agradável a não ser que estejamos em busca de algo; então a distância e os obstáculos a serem superados representam nossa meta como algo que nos satisfará – uma ilusão que desvanece assim que o objetivo é atingido; ou quando estamos engajados em algo que é de natureza puramente intelectual – quando nos distanciamos do mundo a fim de podermos observá-lo pelo lado de fora, como espectadores de um teatro. Mesmo o prazer sensual em si não significa nada além de um esforço contínuo, o qual cessa tão logo quanto seu objetivo é alcançado. Sempre que não estivermos ocupados em algum desses modos, mas jogados na existência em si, nos confrontamos com seu vazio e futilidade; e isso é o que denominamos tédio. O inato e inextirpável anseio pelo que é incomum demonstra quão gratos somos pela interrupção do tedioso curso natural das coisas. Mesmo a pompa e o esplendor dos ricos em seus castelos imponentes, no fundo, não passam de uma tentativa fútil de escapar da essência existencial, a miséria.

segunda-feira, setembro 3

guerra santa

Falta sono, sobra desassossego... Não me consterna a emigração dos sudaneses, a guerra civil na Somália ou os conflitos em terras colombianas, minha inquietude nada tem de altruísta, é egoísta mesmo, e politicamente incorreta, diz respeito só ao meu umbigo. Da Jihad islâmica que me tira o sono eu sou o Aiatolá, o homem-bomba, a Faixa de Gaza, a Condoleeza Rice e todos os inúteis da ONU... E assim como a ocupação americana no Iraque - que tinha data pra acabar mas continua até hoje – minha Santa Cruzada se estendeu e parece perene, apontando um final feliz tão provável quanto a paz no Oriente Médio.

quarta-feira, agosto 29

papo de maluco

-E aí, Mário, tá melhor?
-Bem melhor, cara, agora só dói quando eu respiro!
-Pô, que sorte a sua, vai poder mergulhar em apnéia sem problema!
-É verdade. Posso mergulhar em apnéia, brincar de prender a respiração na piscina, andar por aí com um pregador no nariz! E podem peidar do meu lado à vontade, não vou sentir nada!
- Mário... Você é mesmo um cara de sorte! Nem vou te desejar melhoras, que você continue assim: mergulhando, brincando, se disfarçando de varal e imune a gases mal cheirosos.
-Valeu, Carli... Uhnn!
-Que foi, Mário?
-Porra, conversando com você esqueci de prender a respiração. Doeu um pouco, mas já passou!
Devia ter peidado! - pensou Carlinhos.
-Pô, ouvi dizer que tem um cara que respira pela pálpebra, por que você não procura se informar sobre essa técnica?
-Pela pálpebra?
-É, pela pálpebra! Acho que é uma técnica oriental, esses “chinas” inventam cada merda...
-Pô, se é chinês deve ser de péssima qualidade, e ainda deve explorar trabalho infantil.
-Mário, isso é uma técnica de respiração, não é uma bosta de mini-game.
-É! Mas porra, como esse cara consegue respirar pela pálpebra?
-Sei lá, Mário, mas antes respirar pela pálpebra do que não respirar...
-Respirar eu até respiro, o problema é que dói, então evito... Uhnn!
-Que foi?
-Respirei de novo!

Carlinhos, com a mão amarela, sorriu!

segunda-feira, agosto 27

frio

Tudo era frio demais. Cama gelada, mobília cinza, paredes brancas. As lâmpadas de mercúrio no corredor conseguiam deixar tudo ainda mais insuportável. Aquele lugar era gélido. E ali, sozinha, ela só desejava a presença de alguém, de alguém que realmente se importasse. Alguém que lhe trouxesse um cobertor colorido e lhe ajeitasse melhor o travesseiro, que encostasse a porta do quarto e ao seu lado permanecesse por horas. Esse alguém não precisaria dizer nada, poderia ficar calado, imóvel. Sua simples presença já seria o suficiente pra transformar o mercúrio em vapor de sódio, pra pintar de laranja o branco descascado daquelas paredes frias, pra cobrir de vermelho o enfadonho cinza da velha mobília.

segunda-feira, agosto 20

ui! [você inventa]

por Tom Zé e Odair Cabeça de Poeta
Você inventa grite
Eu invento ai!
Você inventa chore
Eu invento ui!
Você inventa o luxo
Eu invento o lixo
Você inventa o amor
Eu invento a solidão
Você inventa grite
Eu invento ai!
Você inventa chore
Eu invento ui!
Você inventa o luxo
Eu invento o lixo
Você inventa o amor
Eu invento a solidão
Você inventa a lei
E eu invento a obediência
Você inventa Deus
E eu invento a fé
Você inventa o trabalho
E eu invento as mãos
Você inventa o peso
E eu invento as costas
Você inventa a outra vida
Eu invento a resignação
Você inventa o pecado
Eu fico aqui no inferno
Meu Deus,
no inferno
Valha-me Deus,
no inferno

terça-feira, agosto 7

tarde de segunda

Ligo a TV. Olho pra ela. Desligo a TV. Pego um cotonete na gaveta da estante da sala. Limpo o ouvido, não encontro nada. Fiz isso ontem, antes de ontem, nada encontrei. Vou na cozinha. Abro a geladeira. A garrafa de leite na porta tá quase vazia. Pego outra garrafa de leite no armário. Meio copo de requeijão com leite. 40 segundos no microondas. Leite quente. Pego a garrafa de café. "Merda! Acabou a bosta do café." Pó de café no armário da cozinha, porta superior do canto direito. Filtro de papel na porta superior do canto esquerdo. Panelas debaixo da pia. Água no fogo. O barulho do gás assusta. "Merda de fogão!" Alguns minutos e o café tá pronto. O leite esfriou. Mais 40 segundos no microondas. Agora sim, café com leite! Subo as escadas, sento a bunda na cadeira. Computador ligado, conectado com o mundo, infinitas possibilidades de navegação. Ligo o MSN, entre ausentes e ocupados, nomes estranhos, apelidos piores e inúmeras frases sem sentido, me mantenho incomunicável. Entro no Orkut, vejo meus recados, respondo alguns, apago tudo no final. Confiro meus fãs, parabenizo os aniversariantes e 'compartilho' da vida de meus amigos por mais de meia hora. Levanto da cadeira e saio do quarto. Me desconecto temporariamente do mundo de possibilidades que a internet oferece e que eu tão sabiamente desfrutei. Vou pra sala. Deito no sofá. Ligo a TV. Olho pra ela. Desligo a TV. Penso em estudar. Só penso. "Quero cagar! Preciso de um jornal. Cadê a merda do jornal?... Achei!" O Globo de domingo, 22 de julho. Hoje é 6 de agosto. "Foda-se. Vou ler a Revista da TV." Me informo sobre o que aconteceu na semana retrasada em todas as novelas da televisão brasileira. Leitura importante. "Nossa! A Luciana Gimenez levou nota zero." Nunca pensei que alguém se daria ao trabalho de avaliar a Luciana Gimenez. Sexualmente talvez, profissionalmente, nunca. "Caralho! Acabou o papel!" Vou até a despensa pelado. Pasta de amendoim se espalhando pela minha bunda. Pego um pacote de papel higiênico NEVE. 4 rolos num pacote. "Acho que dá e sobra!" Problema resolvido. Bunda limpinha. Volto pra sala, ligo a TV. "Será que começou o programa da Luciana Gimenez?" Lembro que tenho que estudar. Só lembro. Hoje é segunda-feira. "Cerveja seria uma boa... Porra! Tô sem grana." Desligo a TV. Vou pegar mais um café com leite que é de graça. Meio copo de requeijão com leite. 40 segundos no microondas, um pouco de café e... Pronto, café com leite! Rápido, quentinho e sem custos adicionais. Subo novamente a escada. Repito todo o processo anterior... Penso mais uma vez em estudar. Só penso. Sigo pro banheiro tranqüilo e confiante. 4 rolos de NEVE estão a minha espera. "Porra! Onde enfiei a merda do Caderno de Esportes?"

segunda-feira, agosto 6

ali, parado...

Era um frio na barriga, uma vontade de rir e de chorar, uma necessidade de correr e permanecer ali, parado, esperando... Nunca tremi tanto. Era como se tivesse consumido por uma inexplicável hipotermia em plena primavera carioca. Minha garganta engasgava, a saliva faltava. Foi complicado ficar quieto, meus pés balançavam sem parar. Como consegui dirigir até ali? Não importava, tudo já era passado. Confesso, em alguns momentos pensei que o tempo estivesse brincando comigo, me testando. Mas parado ali, depois de tudo, me senti como que a espera do primeiro beijo, ou a procura do meu nome na lista do vestibular. Uma mistura de excitação, medo, angústia, felicidade... Como alguém podia sentir tanta coisa ao mesmo tempo? Não sei. Só sei que ali, parado, esperando, me senti especial, me senti realmente especial. Não me senti assim por me entender importante pra alguém, mas por sentir em mim algo difícil de explicar, um amor, uma capacidade de amar, quase que imensuráveis. Naquele momento já tive certeza de que tudo tinha valido a pena, tudo mesmo. Meu corpo traduzia essa certeza. Estava anestesiado, drogado, contaminado por algo ainda não inventado, algo que me acelerava e me mantinha em câmera lenta, que não me deixava parado, mas ao mesmo tempo me impedia qualquer movimento. O mundo podia terminar ali, nada mais importava, nada podia ser maior, mais forte. Era como se minha respiração e meus batimentos pudessem ser sentidos pelos pés e levados até o pescoço de todos a minha volta. Senti ter certeza sobre tudo, resposta pra todas as perguntas, solução pra todos os problemas. Nada me faria sentir medo, nada seria impossível. O impossível não fazia mais sentido algum. Eu tava ali.

sexta-feira, agosto 3

história de vizinha

Saí andando sem um motivo, sem um porquê, apenas saí. Quem sabe não encontrava alguma coisa, quem sabe não encontrava alguém. Ou talvez, quem sabe, simplesmente me encontrava. Não tenho sido uma boa companhia pra mim. Minha presença em minha vida tem sido demasiadamente chata, como uma vizinha faladeira, hipocondríaca e aposentada, do tipo que liga pra sua casa numa noite de quarta-feira [na hora do futebol, pra ser mais exato aos 34 minutos do segundo tempo, quando seu time está ganhando a partida por 2 x 1 na casa do adversário, com um homem a menos] e pergunta se você tem uma xícara de açúcar pra emprestar. Quando você retruca com um curto, grosso e impaciente “NÃO”, ela simplesmente começa a imendar quinhentos novos assuntos; fala mal da moradora exibida do 502, fala da excursão que fará no feriado de 7 de setembro pra Paraty com um grupo de voluntários que conheceu no “Amigos da Escola”, conta as inúmeras peripécias do seu prodigioso neto de nove anos, o gorducho do Paulinho, e por fim, pergunta se pode ir até seu apartamento pegar a xícara de açúcar que, 10 minutos atrás, você disse não ter. Você respira fundo e... "Gol!" O narrador grita gol! E o gol não é do seu time... É nessa hora que você é consumido por uma vontade quase incontrolável de afogar a desgraçada, olhar no fundo dos olhos dela e gritar: “Não me interessa se o Paulinho lutou judô nas Olímpiadas dos colégios católicos, a senhora pode pegar a medalha de bronze do viadinho do seu neto, juntar com o elogio que a professora de inglês fez à pronúncia do pirralho e enfiar tudo bem no meio do olho do seu... do seu... do Seu Carlos!” Se já não bastasse aquela vizinha incoveniente, no meu caso particular, a gentil Dona Clotilde, ultimamente tenho sido a vizinha inconveniente de mim mesmo, a toda hora me lembrando o que não quero lembrar, me contando o que não quero saber, atrapalhando minha própria rotina com um monte de merda que quero esquecer... Mas enfim, a caminhada até que serviu de alguma coisa... Hoje é quarta-feira. Passei no mercado e comprei um quilo de açúcar de presente pra ela, a gentil Dona Clotilde!

quinta-feira, julho 5

notas de um velho safado

por Charles Bukowski

Sente-se, Stirkoff.
Obrigado, senhor.
Espiche as penas.
Muito gentil da sua parte, senhor.
Stirkoff, eu compreendo que você anda escrevendo artigos sobre a justiça, a igualdade; também sobre o direito à felicidade e à sobrevivência. Stirkoff?
Sim, senhor?
Você acha que existirá algum dia uma justiça soberana e sensível no mundo?
Na realidade não, senhor.
Então porque você escreve essa merda? Você não está se sentindo bem?
Eu venho me sentindo meio estranho ultimamente, senhor, quase como se estivesse ficando louco.
Você anda bebendo muito, Stirkoff?
É claro, senhor.
E você de masturba?
Constantemente, senhor.
Como?
Eu não compreendo, senhor?
Eu me refiro a como você faz a coisa.
Quatro ou cinco ovos crus e meio quilo de hambúrguer num vaso de flores de gargalo estreito ouvindo Vaughn Williams ou Darius Milhaud.
Vidro?
Não, bunda, senhor.
Eu me refiro ao vaso, é de vidro?
É claro que não, senhor.
Você alguma vez já foi casado?
Muitas vezes, senhor.
O que aconteceu de errado?
Tudo, senhor.
Qual foi a melhor trepada da sua vida?
Quatro ou cinco ovos crus e meio quilo de hambúrguer num...
Tudo bem, tudo bem!
Mas é verdade.
Você se dá conta que o seu desejo ardente de justiça e de um mundo melhor é apenas fachada para ocultar a decadência e a vergonha e o fracasso que residem dentro de você?
Hã hã.
Você teve um pai depravado?
Eu não sei, senhor.
O que você quer dizer com você não sabe?
Quero dizer que é difícil de comparar. O senhor vê, eu só tive um.
Tá tentando bancar o esperto comigo, Stirkoff?
Oh não, senhor; como o senhor disse, a justiça é impossível.
Seu pai batia em você?
Eles se revezavam.
Pensei que você tinha apenas um pai.
Todo homem tem. O que quero dizer é que minha mãe dava as dela.
Ela amava você?
Somente como uma extensão de si mesma.
O que mais pode ser o amor?
O senso comum de querer muito alguma coisa muito boa. Não se precisa estar relacionado por laços de sangue, pode ser uma bola de praia vermelha ou uma fatia de torrada com manteiga.
Você está querendo dizer que você pode AMAR uma torrada com manteiga?
Somente algumas, senhor. Em determinadas manhãs. Sob determinados raios de sol. O amor chega e vai embora sem avisar.
É possível amar um ser humano?
É claro, especialmente se você não os conhece muito bem. Eu gosto de olhar para eles através da minha janela, caminhando na rua.
Stirkoff, você é um covarde?
É claro, senhor.
Qual é a sua definição de covarde?
Um homem que pensaria duas vezes antes de lutar com um leão com as mãos nuas.
E qual é sua definição de um homem corajoso?
Um homem que não sabe o que é um leão.
Qualquer homem sabe o que é um leão.
Qualquer homem pensa que sabe.
E qual é a sua definição de um tolo?
Um homem que não se dá conta que o Tempo, a Estrutura e a Carne em sua maior parte se desgastam.
Então quem é que é sábio?
Não existe nenhum sábio, senhor.
Então não pode haver nenhum tolo. Se não existe noite não pode existir dia; se não existe branco não pode existir preto.
Sinto muito, senhor. Eu pensava que tudo era o que era, não dependendo de qualquer outra coisa.
Você andou metendo o seu pau em vasos de flores demais. Será que você não compreende que TUDO está certo, que nada pode andar errado?
Eu compreendo, senhor, o que acontece, acontece.
O que é que você diria se eu tivesse que mandar decapitá-lo?
Eu não seria capaz de dizer coisa alguma, senhor.
Eu quis dizer que seu eu quisesse mandar decapitar você eu permaneceria a Vontade e você se transformaria em Nada.
Eu me transformaria em outra coisa.
À minha ESCOLHA.
De acordo com ambas as nossas escolhas, senhor.
Relaxe! Relaxe! Espiche as pernas!
Muito gentil da sua parte, senhor.
Não, muito gentil de ambas as partes.
Naturalmente, senhor.
Você diz que freqüentemente sente essa loucura. O que é que você faz quando ela se apodera de você?
Escrevo poesia.
A poesia é loucura?
Não-poesia é loucura.
O que é loucura?
Loucura é feiúra.
O que é feio?
Para cada homem uma coisa diferente.
A feiúra é conveniente?
Ela está aí.
Ela é conveniente?
Eu não sei, senhor.
Você aspira ao conhecimento? O que é conhecimento?
Conhecer o mínimo possível.
Como é que pode ser isso?
Eu não sei, senhor.
Você pode construir uma ponte?
Não, senhor.
Você pode fabricar uma arma?
Não, senhor.
Estas coisas são produtos do conhecimento.
Estas coisas são pontes e armas.
Eu vou mandar decapitá-lo.
Obrigado, senhor.
Por quê?
O senhor é minha motivação quando eu tenho muito pouca.
Eu sou a justiça.
Talvez.
Eu sou o vencedor. Eu vou fazer que você seja torturado, eu vou fazer você gritar. Eu farei você desejar a morte.
Naturalmente, senhor.
Será que você não se dá conta que eu sou o seu senhor?
O senhor é o meu manipulador; mas não há nada que o senhor possa fazer a mim que não possa ser feito.
Você pensa que fala inteligentemente, mas com os seus gritos você não dirá nada inteligente.
Eu duvido, senhor.
Por falar nisso, como é que você pode escutar Vaughn Williams e Darius Milhaud? Nunca ouviu falar nos Beatles?
Oh, senhor, todo mundo já ouviu falar dos Beatles.
Você não gosta deles?
Eu não desgosto deles.
Você desgosta de algum cantor?
Cantores não podem ser desgostados.
Então, qualquer pessoa que tenta cantar?
Frank Sinatra.
Por quê?
Ele evoca uma sociedade doente para uma sociedade doente.
Você lê algum jornal?
Apenas um.
Qual?
OPEN CITY.
GUARDA! LEVE ESTE HOMEM PARA AS CÂMARAS DE TORTURA IMEDIATAMENTE E DÊEM INÍCIO AOS PROCEDIMENTOS!
Senhor, último pedido.
Sim.
Posso levar meu vaso de flores comigo?
Não, eu vou usar ele.
Senhor?
Quer dizer, eu vou confiscá-lo. Agora, guarda, leve esse idiota daqui!
E, guarda, volte com, volte com...
Sim, senhor?
Uma meia dúzia de ovos crus e alguns quilos de alcatra moída...
Saem o guarda e o prisioneiro, o rei inclina-se para a frente, sorri maliciosamente enquanto Vaughn Williams vai se insinuando pelo sistema de comunicação. Lá fora, o mundo movimenta-se para frente enquanto um cão infestado de pulga mija num lindo limoeiro vibrando sob o sol.

domingo, julho 1

saudades do Japão

Fala-se do aumento da conta de luz ao casamento do filho do Jorge, da gravidez precoce da prima do cunhado do Oswaldo a especulações sobre o preço do carro novo da vizinha, da formatura do filho de Ruth à feiúra da namorada do rapaz... Puta que pariu, cada vez mais menos pessoas conseguem me despertar algum tipo de curiosidade em ouvi-las. Sempre as mesmas histórias, os mesmos problemas cotidianos, os mesmos e poucos relatos de falsa felicidade. Chego a sentir saudades da minha vida em Atsugi. Não compreendia o idioma, não diferenciava um japonês do outro e só me alimentava de arroz e peixe cru. Uma vida saudável. Nenhuma gordura insaturada, nenhuma conversa fiada e nenhuma mulher ocidental por perto tentando destruir a minha vida. Incrível como dedicamos a maior parte de nossa existência insignificante a falar da insignificância alheia, ainda mais singular é a nossa capacidade em transformar - sem nenhum constrangimento - o ouvido dos outros em penico. Haja paciência pra ouvir tanta besteira, haja cotonete pra limpar tanta merda.

domingo, junho 24

dia-a-dia

Os dias parecem sempre o mesmo dia. Nada de novo, nada de velho, nada de nada. Nada na geladeira, nada na televisão, nada acontece. Vida vazia. Mente abarrotada, sufocada por velhas recordações e por uma vontade silenciosa – quase muda – de mudar alguma coisa. Por fora apatia, por dentro inquietação contínua - ininterrupta - como um mal de alzheimer... Que não deixa dormir, que insiste em acordar.

quinta-feira, maio 31

vícios e virtudes

Acordo às seis da tarde com a sensação de que dormi por uma semana. Puta que pariu, só consigo repetir mentalmente um sonoro puta que pariu. Mais um dia sem ver a luz do sol. Antes tivesse enchido a cara e acordado ainda bêbado com o quarto cheirando a álcool e as roupas espalhas pelo chão. Nem pra me embriagar tive coragem de enfrentar o frio que faz lá fora. Vento frio de um Rio de Janeiro frio em pleno aquecimento global. Aquecimento global fodido... Não aquece a cidade muito menos a vida de um pobre e sedentário notívago tentando mudar sua rotina de internet, coca-cola, café e punheta. Esse frio tem me tirado até a fome, impossível me motivar a mudar de vida. Parar de beber, acordar cedo, dar aquela corrida matinal, obviamente precedida de um alongamento, e inebriado por minhas próprias virtudes, respirar o incomparável perfume da manhã... Que merda! Um abstêmio que acorda cedo, se alonga antes de correr, e cheio de si, respira profundamente o ar da alvorada. Como poderia confiar em mim mesmo? Alguém assim só poderia ser um mentiroso, um tipo cínico de terno de grife, dono de um carro preto importado, uma pasta de couro de jacaré e de uma sala em um belo edifício comercial patrimônio de uma grande multinacional do petróleo. Certamente eu faria contribuições mensais para os órfãos de alguma guerra civil na África, coincidentemente, continente mais explorado pela empresa dona do prédio bonito em que eu tenho uma vaga para o meu carro preto e uma sala com uma grande mesa onde coloco pra descansar diariamente meu pequeno jacaré taxidermizado. Acho que confiaria mais em mim chegando em casa pela manhã, bêbado, trocando as pernas e prendendo a respiração, certo de que se repirasse fundo, vomitaria. Talvez vomitasse pela ânsia provocada pelo cheiro inconfundível da hipocrisia matutina, ou simplesmente pela quantidade de cerveja barata ingerida na tentativa de esquecer minha carência de virtudes e abundância de vícios. Também poderia vomitar por não ter um terno, não ter um carro, ou por compaixão aqueles pobres jacarés transformados em pastas de gosto duvidoso. Talvez vomitasse meus próprios vícios e virtudes na tentativa de distingui-los em meio a cerveja, a bile e aos amendoins. Ou, como um simples mortal, vomitasse na tentativa inócua de amenizar uma puta ressaca a caminho. É... Melhor voltar pra internet...

terça-feira, maio 22

quero ser feliz

Quero constituir família: mulher, filhos, casa, jardim
Quero uma secretária gostosa, que faça de tudo por mim

Quero trabalho, lazer, quero uma vida normal
Com muito sexo, orgia, tudo bem convencional

Quero liberdade de escolha, liberdade de expressão
Quero, em liberdade, responder meus processos por fraude, sonegação

Quero aparecer na TV, comer uma gostosa do BBB
E em minhas férias na França, fazer um curso de Sommelier

Quero todo ano pular carnaval em Salvador
E sem cerimônia, dar 3 mil reais no abadá do Armandinho, Osmar e Dodô

Em revistas, quero meu dia-a-dia exposto
Quero financiar projeto cultural pra pobre, e assim pagar menos imposto

Quero me filiar ao PSDB, com móveis de assinatura, mobiliar o meu AP
E fumar diariamente ervas aromáticas no meu narguile

Na base da propina, quero ganhar licitação
Construir belas e superfaturadas pontes, lá no sul do Maranhão

No Rio, quero fundar uma ONG, fazer projeto social
E encher meu cu de dinheiro, com apoio de uma multinacional

p.s. Texto gentilmente cedido para os Skrotes Boys of the Catland

segunda-feira, maio 14

bicicleta

De Castigo. Sentado. No canto da sala. A bicicleta roubada. Tento vídeo-game, bola, totó, ping-pong. Qualquer coisa pro tempo passar. Tento. Mas me levaram o brinquedo preferido. Me tiraram a vontade de brincar. Na rua, com amigos, brinco, mas pelo simples dever de brincar. Brinco. Mas brinco pensando nela. Brinco até ela voltar.

quinta-feira, maio 10

cenas do rio de janeiro - nº 1

Manhã de quinta-feira. Avenida Rio Branco. Entre o corre-corre de gravatas, guarda-chuvas e entregadores de papel, dois guardas municipais parecem conversar.

- Eu teria um desgosto profundo se faltasse o Flamengo no mundo. Ele vibra! Ele é fibra! Muita libra! Já pesou? Flamengo até morrrrrrrer eu sou. - cantava entusiasmadamente o primeiro guarda.
Silêncio.
- Hahahahahahahahaha! - gargalhou ironicamente o primeiro guarda.
O segundo guarda permanecia calado.

Noite de quarta-feira. Maracanã. 57 mil torcedores. Flamengo 2 x 0 Defensor. Flamengo eliminado da Copa Libertadores da América pela soma de resultados.

terça-feira, maio 8

42 - Circular - Via São Lourenço

Todas as segundas e quintas a mesma coisa, aulas de inglês. Só tinha 11 anos e tinha que ir às aulas de inglês. Duas vezes por semana. Uma hora e meia de aula. Mas pra quê? Por que perder tempo aprendendo aquela merda de língua? Não conhecia nenhum inglês, mal sabia onde ficava a Inglaterra, nunca tinha ouvido nada do Ramones, muito menos enchido a cara de Guinness.

Meu pai dizia que era importante. No início acreditei nele. No início. Os indiozinhos me fizeram mudar de opinião. O que poderia ser mais idiota que decorar uma música sobre indiozinhos? Lembro da minha primeira professora de inglês: cabelo loiro, pele morena de sol, olhos verdes e óculos azuis. Ela cantava a música dos indiozinhos. Eu boquiaberto olhava pra ela. A turma “Step One” seguia cantando...


One little, two little, three little Indians
Four little, five little, six little Indians
Seven little, eight little, nine little Indians
Ten little Indian boys.

Ten little, nine little, eight little Indians
Seven little, six little, five little Indians
Four little, three little, two little Indians
One little Indian boy.”

Será que mais ninguém questionava a imbecilidade daquela música? Provavelmente todos ficaram satisfeitos com a explicação paterna.

- Estudar inglês é importante pro seu futuro, meu filho.

Se naquela época meu pai dissesse que em um futuro próximo eu poderia conhecer garotas loiras, de pele morena, olhos verdes e óculos azuis, e que essas garotas poderiam somente entender a língua de Oscar Wilde, e que, provavelmente, só conseguiria fodê-las se estudasse inglês desde a 5ª série, teria matado menos aulas dando voltas no “42 - Circular - Via São Lourenço”.

quinta-feira, maio 3

fingi na hora rir

Hoje eu quis brincar de ter ciúme de você
Mas sem por que meu coração me avisou que não
Fingi na hora rir
Talvez por aqui estar tão longe de você pra te dizer

Aquilo que eu temia aconteceu ou foi só ilusão?
Você manchou nós dois e desbotou a cor de um só coração
Ou anda sozinha, me esperando pra dizer coisas de amor

Pois eu, eu só penso em você
Já não sei mais porque
Em ti eu consigo encontrar
Um caminho, um motivo, um lugar
Pra eu poder repousar meu amor

Quantas horas mais vão me bater até você chegar?
Aqui meu lar deixou de ser aquilo que um dia eu construí
E eu fico sozinho, esperando pra trazer você para mim

Sofro por saber que não sou eu quem vai te convencer
Que cada dia a mais é um a menos pro encontro acontecer
E eu fico sozinho, esperando por você, meu bem-querer

Pois eu, eu só penso em você
Já não sei mais por que
Em ti eu consigo encontrar
Um caminho, um motivo, um lugar
Pra eu poder repousar meu amor

Los Hermanos – Marcelo Camelo

"A banda Los Hermanos comunica a decisão de entrar em recesso por tempo indeterminado. Por conta disso não há previsão de lançamento de um novo disco."

Que o "tempo" não seja definitivo...

segunda-feira, abril 23

ditado

Abaixo, segue um texto ditado pela professora aos alunos de uma turma da 5ª série do 1º grau, em uma escola estadual, no município de Niterói – RJ.

Suas qualidades

Algumas boas qualidades você já descobriu que existem dentro de você. Pode ser um bom atleta, alguém chegado às artes, uma pessoa que gosta de ajudar os outros. Ou, talvez, o humor seja o seu forte e você diverte as pessoas, brincando e contando piadas. Ou ainda você pode ser um cidadão com espírito de liderança, preocupado com os problemas de sua escola, de sua cidade e até de seu país.
Enfim, você sabe muito bem quais são suas qualidades. Pense nelas e fale daquilo que é o seu forte.


O texto acima, ditado pela professora, deveria ser escrito pelos alunos em uma folha de caderno, o que permitiria a avaliação de suas capacidades de ouvir, assimilar e passar o que ouviram para o papel, ou seja, uma avaliação do nível de compreensão e domínio da língua portuguesa. Segue abaixo, a transcrição do texto supracitado por um dos alunos da turma.

Sua quelidade

Auguas boas quelidades você vadis culeou que e zida derodereortê. Podarcê um bou atrata, anha xagado as arte, um pesoa que gorta de aguda as otras. O, teureo, una jega aseu e reage digada as pessa, e cater diada. O aida você podice um cidadão com espirato da lidaresa, preucoda com prabiana de sua escola, de sua cidade a tecia ateis.
Ífim, você salca muitobea que são suas quelidade. Pecinalas e falas da quelo que eufuta
.”

O aluno responsável pelas desconexas palavras acima concluiu o primário em uma escola municipal de Niterói. O município de Niterói tem como política educacional a não reprovação de seus alunos, ou seja, todo aluno, capacitado ou não, deve avançar paras as séries seguintes, mesmo não apresentando condições mínimas para acompanhar os ensinamentos que lhes serão apresentados futuramente.

Esta é a política educacional de um dos municípios mais ricos de um dos estados mais ricos do país. Política de um governo do Partido dos Trabalhadores. Política do governo de um Prefeito-Professor. Política de um governo que se diz comprometido com a questão social. Uma política que gera saldos “positivos” de aprovação, mas que esconde um saldo negativo e irreparável na educação de alguns de seus alunos, que terminam o primário praticamente analfabetos.

segunda-feira, abril 16

ridículo e só

Só conseguia me sentir um idiota. Minha vontade era ficar o tempo todo debaixo da mesa do bolo, ou quem sabe escondido na caixa dos presentes. Me sentia o mais idiota entre todos os garotos idiotas da 4ª série. Por que eu não podia usar roupas normais? Um tênis normal, uma calça jeans normal, uma camisa colorida qualquer com alguma frase estúpida em inglês? Toda festa de aniversário era uma espécie de Segunda, Terceira, Quarta Comunhão. Ela separava meu cinto e meus sapatos brancos de verniz, minhas meias finas e brancas que iam até os joelhos, minha bermuda branca de pregas e minha camisa branca cheia de botões.

Antes aquela fosse minha Primeira Comunhão e não a festa de aniversário de um colega de escola. A julgar pela minha aparência, estaria no lugar certo, onde poderia expiar, reservadamente em um confessionário, meus primeiros pecados.

- Me perdoe, padre, pois eu pequei.
- Qual seu pecado, meu filho?
- Desejei arremessar pela janela do meu quarto toda essa roupa ridícula e branca que estou vestindo, e junto à roupa, padre, também desejei arremessar a minha mãe.

A parte ruim seria a quantidade infinita de Ave Maria e Pai Nosso que viriam depois, mas nada comparável ao castigo de estar em uma festa fantasiado de “Gasparzinho Envernizado” enquanto todos seus amigos ostentam tênis novos, calças jeans e camisas coloridas. Talvez eu fosse o único aluno do colégio a agradecer secretamente pela existência do uniforme escolar obrigatório: tênis de couro preto, meia preta, bermuda jeans e camisa verde. Era bom chegar ao colégio e estar vestido como todo mundo. A idéia de que todas as festas de aniversário também pudessem ter uniformes obrigatórios me empolgava. Se os garçons tinham uniformes obrigatórios, por que não os convidados? Intimamente, invejava os garçons. Podiam parecer ridículos com aqueles paletós brancos e suas gravatas pretas de borboleta, mas não estavam sós. Nas festas, eu era sempre o único de sapatos brancos de verniz. Ridículo e só.

quarta-feira, março 28

era uma vez uma arte...

Das ruas para as vitrines – Grifes, arquitetos e galerias de arte rendem-se ao boom do grafite http://veja.abril.com.br/vejarj/100506/capa.html

A bonequinha de traços orientais e cabelo esvoaçante espalhou-se de muro em muro. Hoje, é um FENÔMENO de MARKETING. Criada pelo grafiteiro Tomaz Viana, o ‘Toz’, 30 anos, a boneca Niña já decora apartamentos à beira-mar, ilustra camisetas e virou obra de arte à venda na Galeria Haus Contemporânea.”

Nos últimos anos, o grafite carioca vem extrapolando os limites dos muros, ganhou STATUS e tornou-se OBJETO de CONSUMO de adolescentes e jovens.”

“Na mostra Artefacto do ano passado, o arquiteto Geraldo Lamego projetou um home theater em que se destacava uma parede coberta pelo grafite abstrato de Ismael Vagner de Lima, 26 anos, o ‘Smael’.”

“No circuito das artes plásticas, telas de grafiteiros cariocas chegam a VALER 10.000 REAIS.”

“Um de seus painéis foi escolhido para enfeitar o muro da Casa de Saúde São José, no Humaitá. Já pintou várias vitrines e fez cenário para a estilista Isabela Capeto. Os vestidos de Adriana Barra, para quem (Mateu) criou estampas em parceria com a artista Renata Americano, chegam a CUSTAR QUASE 2.500 REAIS.”

Era uma vez uma arte...

Arte de rua, arte de protesto, de contestação!
Arte “rotulada” de vandalismo, pirraça juvenil, rebeldia sem causa!
Arte marginal, libertária, transformadora, revolucionária... Arte!

Hoje, o que era underground enfeita parede de sala de estar de madame, é cenário de “Open House” regado a prosecco e pastrami... O que era contracultura agora é estampa de vestido de 2500 reais, de bermuda de 130 e guarda-chuva de 350, é mural de quarto de criança rica, é objeto de consumo das massas, é cult, é moda...

Já dizia o Malvadinho: “Comprar artistas, o esporte predileto dos engolidores de mundo.” www.malvados.com.br

sábado, março 24

papo de irmão

Ei, e aí?
E aí o quê?
Tá recuperado?
Recuperado?! Recuperado de quê?
Já esqueceu, idiota?
Ah, tô melhor... Mas sabe como é?!
Não, não sei...
Ihhh... Se não sabe também, foda-se.
Porra! Que mau humor, hein!
Mau humor é o caralho, fica enchendo a porra do saco com pergunta idiota.
Beleza, não pergunto mais. Você que se foda sozinho.
Ihhhh, vai pra puta que pariu, vai. Sai daqui...
(silêncio) Tchau, viadinho...
Tchau é o caralho!

domingo, março 18

cada vez melhor

Cada vez melhor, a cada dia melhores e novas notícias. A esperança cresce, a fé se restabelece. A força da gravidade já não se faz sentir em nossos ombros como antigamente...

O salário mínimo deverá subir de R$ 350 para R$ 380. A Revista O Globo de domingo e a sua seção Achados Imperdíveis trazem cada vez mais achados imperdíveis e indispensáveis para nós, meros mortais: “Abotoaduras de prata de lei – R$ 983 na Montblanc”, “Tábua de madeira da Tutto per la Casa – R$ 198”, “Cintos da Patachou à venda na Vila das Flores – R$ 185”, “Carteira da Kostuum ­– R$ 280”.

Realmente está tudo melhor, mas, infelizmente, nem tudo são flores ou abotoaduras de prata de lei da Montblanc: a poluição atmosférica e a destruição da camada de ozônio ainda tiram o sono do brasileiro comum...

Porém, com esse salto triplo twist carpado de R$ 30 no salário mínimo nacional, um trabalhador, que em sua Carteira de Trabalho e Previdência Social venha a ter a remuneração especificada em R$ 380 poderá comprar um Sundown 50 nos Supermercados Pão de Açúcar pela bagatela de R$ 30,35, sem comprometer seu orçamento mensal. E, ao economizar por mês o equivalente a R$ 349,65* desse mesmo orçamento, conseguirá realizar o sonho do automóvel zero quilômetro próprio e bi-combustível em menos de 6 anos.

Realmente, está tudo melhor, cada vez melhor!

*R$ 380 – R$ 30,35 do Sundown 50 = R$ 349,65.

sábado, março 10

janela sobre as proibições

"Na parede de um botequim de Madri, um cartaz avisa: Proibido cantar.
Na parede do aeroporto do Rio de Janeiro, um aviso informa: É proibido brincar com os carrinhos porta-bagagem.
Ou seja: ainda existe gente que canta, ainda existe gente que brinca."

Eduardo Galeano, em As Palavras Andantes.